Leve Além...

quinta-feira, 7 de outubro de 2010

Conto inspirado em Mario de Andrade

           Contando agora só o que passou


No pulo seco da chibata nas costas, o sabiácea, o sabiá una e o sabiapiranga amenizavam as dores dos que sofriam por ali, com seus cantados eloquentes e formosos. O indígena filho dos feijões-pretos, gigantes, vindos das matas fechadas do Igapó, pensava em melhores tempos idos ate a chegada dos macacos-máquina-brancos, açoitando a terra e os que viviam por lá.
Pouco tempo depois já não se podia ver mais o jacaré una, o jacaré-ururaú de papo amarelo e nos ramos das igazeiras os macacos-máquina-brancos davam fim nas aningas, as mamoranas das embaúbas, os catauaris de beira de rio, assim contando agora só o que passou.
Sentada na beira de um tronco, úmido, mal cheiroso e vinda da cidade de Sião, onde tudo era festa e alegria, nossa heroína contava as marcas espalhadas pelo corpo, indignada, deprimida, olhava mas não acreditava que os macacos-máquina-brancos fossem superiores a ela somente porque ela era feia, carcomida do tempo, pés rachados,mãos tremendo, os dias passavam e seus cabelos nem se quer mexiam com ventos e chuvas, mas pensava em melhores tempos idos.
As correrias das madrugadas eram a única velhice que assolava a filharada do feijão preto que já não sustentava o pulo da chibata nas costas e destinavam-se a um lugar diferente, o buraco.
O lugar onde queriam se assuntar era onde não teriam chance nenhuma de viverem em paz. O buraco, caverna, vala, chão negro, numa imensidade de tamanho onde se abrigava os macacos-máquina-brancos era o único lugar onde nossa heroína não devia entrar.
Nossa heroína tinha nome, mas isso não interessava a quase ninguém, vivia tão perto das pessoas que gostava, que certo dia um parente a perguntou o nome.
-- Escute criatura qual é o seu nome?
Naquele momento nossa heroína, ficou paralisada, somente com as mãos tremendo, pois tinha um mal que nem a reza mais braba de curandeiro podia fazer parar.
--Meu nome? Meu nome é Maria. Respondeu a guerreira valente desbravadora de seus e infernos, mas que era carente e só precisava de um pouco de atenção, achava que sabia quem era, mas só sabia do que não gostava.
Nos dias estranhos que passara, ficava poeira se escondendo pelos cantos, quando de repente s viam tendo que trabalhar para os macacos-máquina-brancos, nos dias mais ensolarados que nem as lagartixas ficavam ao sol se escondendo embaixo das majestosas árvores que só de olhar o tamanho dava tontura.
A filharada do feijão-preto subia e construía as extremidades secas dos arranha-céus do lugar, onde todas as noites se ouvia uma macaca trepando na bananeira do seu ”João da esquina”, aquele que vende pés de moleque na rua do alto, assim fazendo uma noite de suor e tinta fresca. A todo o momento, também, se sentia o cheiro forte da noite se refazendo e dando lugar ao rio brilhante amarelo queimado que iluminava as orações de pecado das peruas do bairro.
O murmurejo da besta do mato, logo anunciava um dia formoso e bonito, nas ruas, nos caminhos, nos becos, nas vielas, que produziam um odor estranho, quase que sempre abolido do mato virgem, com gosto de sujeira preta do nariz, seguia a conduzir o gado para o “mato” comer o capim.
O jacaré-açu que jaz ali, imaginava como seria a moradia com os macacos-máquina-brancos, atravessando as madrugadas, contando agora só o que passou. Quando os matos reboavam com doçura adormecendo as cobras, os carrapatos, os mosquitos e os deuses ruins, a filharada do feijão–preto foge pros quilombos pra matutar macumba braba pros macacos-máquina-brancos para que eles os esquecessem e buscassem sua própria comida.
Saudavam todos os santos da pajelança, o boto branco que da os amores, Xangô, Omulu, Iroco ochosse, a Boiuna mãe feroz, Obatalá que da força pra fornicar muito, todos esses santos, mas queriam EXU pra se vingar dos macacos-máquina-brancos.
A pajelança se acabava e nossa heroína volta para sua crise de existência, pois ainda não compreendia o porquê dos macacos-máquinas-brancos eram superiores a ela que tinha umas pernas pretas gostosas, mas só as pernas e a bunda que eram deliciosas, que todo feijãozinho-preto esfregava as mãos no perigoso ao vê-la tomar banho no rio. Suas extremidades eram tão suculentas que se podia pegar com as duas mãos, era uma formosura.
Assim chegara o dia da reviravolta, aos trancos e barrancos e pedras no caminho, na estrada tortuosa da vida, nossa heroína sentia-se diferente, pois sabia que alguma coisa iria acontecer.
De longe todos os seres do mato virgem olhavam perguntando-se o que passava no buraco, as aperemas, os saguis, tatus-mulitas, tejus, mussuãns da terra e das arvores tapiucabas, chabós, matinta-pereras, pinica-paus e arauãns do ar, também a ave japiim e seu compadre marimbondo, a baratinha casadeira, o pássaro que grita “taam” e sua companheira que responde “taim”, a lagartixa que anda de pique com o ratão, os tambaquis, os tucunarés, os pirarucus, os curimatãs do rio, os pecaís, tapicurus, iererês da praia, todos perguntavam-se o que passava no lugar, contado agora só o que passou.
Nossa heroína corria no buraco tentando saber o que acontecia na rua do alto, mas vinha dado horas de tanta fome e a barriga dela empacou espiando aquelas sapotas, sapotilhas, sapotis, bacuris, abricós, melancias, maracujás, todas essas frutas e comeu desesperadamente. Ela, que tinha pernas formosas, pernas preto-azuis, agora de tamanho semelhante a Golias, pois naquele instante, época de tantas injustiças foi no ano de 1822 que a filharada dos feijões-pretos conseguiam sua primeira vitoria sobre os macacos-máquina-branco. Ficou determinado que eles poderiam passear pelos pampas, pelos mangues, pela Amazônia toda formosa e que os macacos-máquina-brancos não mandavam mais neles.
O indígena agora era preto, pois suas vitórias glorificavam também os amarelos queimados de bocas rasgadas que sem saber eram românticos, tristes e agora sendo ferozes e insaciáveis por vitória.
Nossa heroína merecia descanso, foi quando apareceu uma imagem branca em sua frente, era um azedo de cabelo amarelo, magrelo, feio, com os dedos dos pés parecidos com os das mãos, mas nossa heroína só percebeu o tamanho do objeto perigoso e sentia vontade de cheirar, cheirar para sentir o odor da vitoria e o orgulho de ser negra quase azul, mas negra de raça. Então a coisa pegou-a pelo braço e gentil levou-a atrás da moita, pegou em sua mão tremendo, com o fervor dos carinhos se deitou e vendo quase que três pernas, pediu-lhe, antes, que a enfiasse toda.
Nossa heroína, hoje vive feliz desbravando céus e infernos, amarrada a ignorância e sempre fugindo dela, sabe do que gosta e não gosta do que sabe, agora não mais um feijão-preto e sim um macaco-máquina-preto nos arranha-céus das cidades, não mais nos igapós, não mais ao lado do sabiácea, jacaré-açu, dos pinica-paus, mas nunca perdendo a graça de ser negra e contando agora só o que passou.

Adson Moreira de Souza

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