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domingo, 16 de outubro de 2011

Grupo com o tema eutanasia : texto de APOIO



Texto base para as discussões sobre eutanásia

Artigo publicado na “Revista de Direito Constitucional e Internacional”, Ano
15 – Janeiro-Março – 2007 – nº 58. – Instituto Brasileiro de Direito
Constitucional, Ed. RT – pp. 39 a 50.

Trata-se de tema delicado, a morte da pessoa humana, que possui vários aspectos, entre os quais podemos mencionar: jurídico, clínico, moral, emocional, social, cultural, religioso, filosófico. Em nossa cultura, em que sempre estamos voltados para o que é bom e agradável, para a vida, esse tema é quase um tabu. Não se deve e, em muitos casos, não se pode falar na morte.
Aprendemos que não é conveniente nem educado tocar neste assunto. Pessoas há que não pronunciam a palavra morte. Preferimos usar sinônimos, termo técnicos e eufemismos. Ocorre, porém, que os seres humanos são mortais, ou seja, a vida humana tem começo, meio e fim.
Neste estudo, abordamos o tema terminalidade da vida, que se refere à etapa final da vida humana, nos casos em que a pessoa é acometida de doença grave, incurável de acordo com os conhecimentos atuais da Medicina e nesses casos, não raras vezes, cogita-se o assunto eutanásia, bem como a doação de órgãos para transplantes. O vocábulo eutanásia é formado pela associação do prefixo grego eu, cujo significado é bom, com a palavra Thanatos, que era o deus que representava a morte, filho da noite, irmão de Hypnos, deus do sono na mitologia grega.
Atribui-se a criação do termo eutanásia, com o significado de “boa morte”, ao filósofo inglês Francis Bacon, em seu livro “História da Vida e da Morte”, publicado em 1623. O termo tem sido usado para significar “morte sem sofrimento”, morte caridosa”, morte sem dor”, “morte piedosa”1. Existem várias classificações referentes à eutanásia, incluindo modalidades sociais, econômicas, judiciais, religiosas. Neste estudo abordaremos exclusivamente a classificação referente a modalidades clínicas e o modo como o direito positivo brasileiro disciplina o tema.
         Enfocamos, outrossim, a doação de órgãos e a legislação pertinente no direito pátrio, com a finalidade da realização de transplantes de órgãos. Essa modalidade terapêutica já era realizada desde a década de 50 (o primeiro transplante renal bem sucedido efetuou-se em 1954), mas a partir do desenvolvimento dos medicamentos imunossupresores, que permitiram o controle do mecanismo de rejeição, mais precisamente nas décadas de 70 e 80, houve a possibilidade de realização de maior número de transplantes2. O desenvolvimento  os transplantes de órgãos teve reflexo nos critérios utilizados para a verificação da morte, pois a principal fonte de órgãos para transplantes é o ser humano3. O novo critério de morte adotado, a partir de 1971, foi o de morte encefálica, que progressivamente passou a ser  dotado pela maior parte dos países ocidentais4. Sem termos pretensão alguma de esgotar tais temas, trazemos alguns elementos para discussão e reflexão a respeito de tão importantes e delicados assuntos.



Explicação dos termos

Inicialmente, cabe uma explicação no que respeita à terminologia utilizada neste estudo: em Medicina os termos são unívocos, diferentemente do Direito, em que os termos muitas vezes são biunívocos, equívocos ou análogos. Fase terminal – “por fase ou doença terminal se compreende uma condição patológica que leva a pensar em uma expectativa de morte em breve tempo como consequência direta da doença”5.
Paciente terminal – “por paciente terminal se designa uma pessoa portadora de doença terminal que, em pouco tempo, com muita probabilidade morrerá”6.
Eutanásia “consiste em ato de produzir a morte fácil e sem sofrimento de um indivíduo portador de moléstia incurável”7.
Ortotanásia8 consiste na “suspensão de meios medicamentosos ou artificiais de vida de um paciente em coma irreversível e considerado em ‘morte encefálica’, quando há grave comprometimento da coordenação da vida vegetativa e da vida de relação”9.
Devemos relatar a recente tendência da classe médica de suprimir a expressão ortotanásia e substituí-la por terminalidade da vida, porque o final da vida é um processo, a apresentar fatores variáveis, com a necessidade de cuidados paliativos que atenuem e o tornem o menos doloroso (em todos os sentidos do termo, seja físico, moral, emocional) possível, tanto para o paciente, quanto para os seus familiares e amigos.
O artigo 1º da Resolução nº 1805 de 09 de novembro de 2006 do CFM (Conselho Federal de Medicina) dispõe que “é permitido ao médico limitar ou suspender procedimentos e tratamentos que prolonguem a vida do doente em fase terminal, de enfermidade grave e incurável, respeitada a vontade da pessoa ou de seu representante legal”.
O artigo segundo da referida resolução determina que “o doente continuará a receber todos os cuidados necessários para aliviar os sintomas que levam ao sofrimento, assegurada a assistência integral, o conforto físico, psíquico, social e espiritual, inclusive assegurando-lhe o direito da alta hospitalar”.
Distanásia “é o tratamento insistente, desnecessário e prolongado de um paciente terminal, que não apenas é insalvável, mas também submetido a tratamento fútil.”10
Não há uma definição de futilidade universalmente aceita, haja vista que o seu significado é difícil de ser caracterizado concretamente. Geralmente entende-se que fútil é algo inapropriado, não indicado, inútil, ineficaz11. Robert Truog12 o qualifica da seguinte forma: “Um problema de futilidade, nada é capaz de defini-lo, mas todos o reconhecem quando o vêem”.
De acordo com Definição da Organização Mundial da Saúde de 2002, “cuidado paliativo é a abordagem que melhora a qualidade de vida do paciente e seus familiares que enfrentam uma doença que ameaça a vida.
Promove o alívio da dor e de outros sintomas e proporciona suporte espiritual e psicossocial desde o diagnóstico até o fim da vida e o período de luto”. Os parâmetros clínicos a serem observados para constatação de morte encefálica são: coma aperceptivo com ausência de atividade motora supra-espinal e apnéia (art. 4º da Resolução do Conselho Federal de medicina nº1480 de 08 de agosto de 1997).



Ética – Ética Médica – Bioética

Ética é “o estudo sistemático das ações voluntárias que constituem a conduta e o comportamento diários do ser humano”. Pode ser classificada como descritiva ao observar e registrar o comportamento das pessoas e normativa a que analisa se determinada conduta é boa e correta, ao considerar os comportamentos pessoal e social13.
Refere-se, a ética médica, à ética normativa aplicada à Medicina, haja vista que são aplicados os mesmos princípios gerais nos problemas e situações médicas14. O juramento de Hipócrates foi o primeiro pronunciamento da ética aplicado à Medicina e que sobrevive através dos séculos até os dias de hoje e constitui um compromisso relevante na prática médica atual15.
O termo bioética surgiu em 197016. Refere-se a questões pluridisciplinares. Segundo a Declaração Universal de Bioética e Direitos Humanos “a Declaração trata das questões éticas relacionadas à Medicina, às ciências da vida e às tecnologias associadas quando aplicadas aos seres humanos, levando em conta suas dimensões sociais, legais e ambientais”17. São quatro os princípios cardinais da ética médica e foram adotados pela bioética. São os seguintes:
O princípio de autonomia “estipula que qualquer ato que tenha consequências
para outrem seja subordinado ao consentimento da pessoa envolvida. Sem esse acordo, a ação não é legítima e o uso da força para resistir a ela é moralmente defensável.18” Este princípio determina que o médico transmita ao paciente informações cuidadosas da verdade sobre o diagnóstico e prognóstico, sobre as opções de conduta, sobre o planejamento do tratamento e das futuras expectativas, de modo que o paciente tenha condições de entender a sua real situação19.
O princípio da beneficência “considera que a ação deve tender para a realização do bem tendo em consideração a concepção do bem de outrem.20” Fundamenta-se, este princípio, em longa tradição da ética médica a reconhecer como objetivo básico da Medicina o bem-estar do paciente, de modo a incluir neste tópico que “os interesses do paciente estão em primeiro lugar”21.
O princípio da não maleficência “impõe a obrigação de garantir que os benefícios de uma ação superam os malefícios, segundo o preceito hipocrático primum non nocere.22” Esta frase em latim, de origem desconhecida, não corresponde a uma tradução literal do juramento de Hipócrates, que solicita dos médicos o “cumprimento do que é benéfico aos seus pacientes e evitar tudo o que for prejudicial e danoso”23.
O princípio da Justiça “exprime a exigência de uma regulação ética das relações entre os homens que vivem em sociedade. As suas interpretações tradicionais e racionais são diversas e estão sempre a serem debatidas. O princípio de Justiça é crucial para a bioética, desde que ela tome em consideração as dimensões sociais, políticas e econômicas das questões que
suscita.24”.
O princípio formal da justiça e igualdade atribuído a Aristóteles sustenta o princípio da Justiça acatado inicialmente pela ética médica e posteriormente pela bioética, indicando que todos os pacientes devem ter acesso a um mesmo nível de adequado de tratamento de saúde, bem como à distribuição dos recursos disponíveis de tratamento25.
Devemos observar que não existe hierarquia entre os quatro princípios, o que pode fornecer soluções diferentes conforme o princípio que se privilegia. Não há, portanto, possibilidade de prever, antecipadamente, que atitude será adotada com um determinado doente26. O entendimento ético da classe médica é no sentido da defesa da saúde e da dignidade do ser humano e veda todo e qualquer ato que atente contra a vida humana27, assim o Código de Ética Médica determina o seguinte:

Art. 6º - “O médico deve guardar absoluto respeito pela vida humana, atuando sempre em benefício do paciente. Jamais utilizará seus conhecimentos para gerar sofrimento físico ou moral, para o extermínio do ser humano ou para permitir e acobertar tentativa contra sua dignidade e integridade”.

Art. 66 – “Veda ao médico, em qualquer caso, o uso de meios destinados a abreviar a vida do paciente”.
O Capítulo III do código de Ética Médica, que trata da responsabilidade profissional, determina que é vedado ao médico:

Art. 42 – “Praticar atos profissionais danosos ao paciente, que possam ser caracterizados como imperícia, imprudência ou negligência”.



Princípio da dignidade da pessoa humana – Valor basilar de nosso
ordenamento jurídico

Nos diversos países o tema é entendido de acordo com os valores de seu povo, informados pela cultura, formada pela ética, moral, religião, costumes, que informam todas as atividades de uma sociedade, inclusive o Direito, que disciplina essas referidas atividades e que, por sua vez, é informado por esses mesmos valores. Observa-se que, apesar de todo o conjunto de fatores que formam a cultura de uma sociedade informarem o Direito, é ele que tem a força coercitiva necessária para ditar as leis, o que efetivamente vai obrigar ou impedir determinados comportamentos.
No que respeita a este tópico, a nossa sociedade elegeu o princípio da dignidade da pessoa humana como um dos principais e, segundo penso, o principal valor, como valor basilar e do qual todos os demais valores decorrem. Consiste em um princípio cristão28, que informa todo o nosso ordenamento jurídico, haja vista que está positivado já no artigo 1º de nossa Constituição como um dos fundamentos da República, pois a República Federativa do Brasil constitui-se em um Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos a soberania, a cidadania, a dignidade da pessoa humana (grifamos), os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa, o pluralismo político.
Trata-se de norma constitucional de eficácia plena na lição de Meirelles Teixeira29, ou seja, produz, desde o momento de sua promulgação, todos os efeitos essenciais, todos os objetivos especialmente visados pelo legislador constituinte e incide direta e imediatamente, de modo pleno, sobre a matéria que lhe constitui objeto (comportamentos, situações, interesses, organizações etc.). Isto significa que toda a legislação pátria está submetida a esses fundamentos, porquanto a todo o nosso ordenamento jurídico eles se aplicam, incluindo todas as outras normas constitucionais e infraconstitucionais, de modo que nada que fira ou avilte a dignidade da pessoa humana é acolhido em nosso ordenamento jurídico.
O artigo 5º do texto constitucional determina que todos são iguais perante a lei e garante a inviolabilidade do direito à vida, a liberdade, a igualdade, a segurança, aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País.

Observa-se que tanto a República, quanto a Democracia são originadas no princípio da Igualdade, que por sua vez, origina o princípio da Liberdade, visto que não há hierarquia entre iguais, não é lícito que uma pessoa humana seja proprietária de outra pessoa humana. Ora, não é possível falar em garantir a inviolabilidade do direito à vida, em Liberdade e em Igualdade sem se pensar em dignidade da pessoa humana. Todos este valores decorrem de se admitir a dignidade da pessoa humana como valor principal e basilar.
A sustentar este entendimento, mencionamos a seguinte exposição de Humberto Ávila30: “Como se vê, os princípios são normas imediatamente finalísticas. Eles estabelecem um fim a ser atingido. Como bem define Ota Weinberger, um fim é ideia que exprime uma orientação prática. Elemento constitutivo do fim é a fixação de um conteúdo como pretendido”.
Consiste a dignidade da pessoa humana em princípio absoluto e neste sentido, entende-se que a pessoa humana é um minimum invulnerável que deve ser assegurado por todo estatuto jurídico, pois ainda que se opte, em determinada situação, pelo valor coletivo, essa opção não poderá nunca sacrificar ou ferir ovalor da pessoa humana31.

______________________

1 PETROIANU, Andy. Ética, Moral e Deontologia Médicas. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 2000, p.
251.
2 HOTTOIS, Gilbert; MISSA, Jean-Noël. Nova Enciclopédia da Bioética. Portugal: Instituto Piaget, 2003,
p.661.
3 HOTTOIS, GILbert; MISSA, Jean-Noël. Op. cit., p. 661.
4 HOTTOIS, Gilbert; MISSA, Jean-Noël. Op. cit., p490.
5 URBAN, Cícero de Andrade. Bioética Clínica. Rio de Janeiro: REVINTER, 2003, p. 496.
6 URBAN, Cícero de Andrade. Op. cit., p. 496.
7 BLAKISTON. Dicionário Médico. 2ª Ed. São Paulo: Organização Andrei Editora Ltda., p. 410.
8 Está em andamento a elaboração de texto legal com o fito de disciplinar expressamente a ortotanásia. Até a
conclusão deste artigo, a situação referente à matéria está do seguinte modo: Cláudia Collucci (in Folha de
São Paulo, dia 17.11.06) informa que “há um anteprojeto do Código Penal que está na CCJ (Comissão de
Constituição e Justiça) que regulamenta o assunto e que, a CNBB (Conferència Nacional dos Bispos do
Brasil) colocou-se favoravelmente à ortotanásia, citando uma encíclica do papa João Paulo 2º, em que afirma
que a prática, feita “com sério discernimento”, representa “a aceitação da condição humana diante da morte”.
9 URBAN, Cícero de Andrade. Op. cit., p. 538.
10 URBAN, Cícero de Andrade. Op. cit., p. 538.
11 URBAN, Cícero de Andrade. Op. cit., p. 515.
12 TRUOG, Robert, apud Cícero de Andrade Urban, op. cit., p. 515.
13 BASTOS, Antonio Francisco; PALHARES, Fortunato Badan; MONTEIRO, Antonio Carlos. Medicina
Legal Para Não Legistas. São Paulo: Copola Editora, 1998, p. 243.
14 Idem, p. 243.
15 Idem, p. 243.
16 HOTTOIS, Gilbert; MISSA, Jean-Noël. Nova Enciclpédia da Bioética. Portugal: Instituto Piaget, 2003, pp.
112 a 114.
17 Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos, Tradução e revisão final sob a responsabilidade
da Cátedra UNESCO de Bioética da Universidade de Brasília (UnB) e da Sociedade Brasileira de Bioética
(SBB).
18 HOTTOIS, Gilbert; MISSA, Jean-Noël. Op. cit., pp. 70.
19 BASTOS, Antonio Francisco; PALHARES, Fortunato Badan; MONTEIRO, Antonio Carlos. Op. cit., p.
245.
20 HOTTOIS, Gilbert; MISSA, Jean-Noël. Op. cit., p. 88.
21 BASTOS, Antonio Francisco; PALARES, Fortunato Badan; MONTEIRO, Antonio Carlos. Op. cit., p. 245.
22 HOTTOIS, Gilbert; MISSA, Jean-Noël. Op. cit. p. 495.
23 BASTOS, Antonio Francisco; PALHRES, Fortunato Badan; MONTEIRO, Antonio Carlos. Op. cit., p. 246.
24 HOTTOIS, Gilbert; MISSA, Jean-Noël. Op. cit. p. 449.
25 BASTOS, Antonio Francisco; PALHARES, Fortunato Badan; MONTEIRO, Antonio Carlos. Op. cit., p.
246.
26 HOTTOIS, Gilbert; MISSA, Jean-Noël. Op. cit. p. 72.
27 PETROIANU, Andy. Ética, Moral e Deontologia Médicas. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 2000, p.
252.
28 FERRAZ JR., Tércio Sampaio. Introdução ao Estudo do Direito. 4ª Ed. São Paulo: Ed. Atlas, 2003, p. 193.
29 MEIRELLES TEIXEIRA, Curso de Direito Constitucional Organizado e atualizado por Maria Garcia,
Rio de Janeiro, 1991, 1ª Ed., p. 317.
30 ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios. 5ª Ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2006, p. 79.
31 SANTOS, Fernando Ferreira. Princípio Constitucional da Dignidade da Pessoa Humana. São Paulo: Celso
Bastos Editor, 1999, p. 94.

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