Texto base
para as discussões sobre eutanásia
Artigo publicado na “Revista de Direito Constitucional e
Internacional”, Ano
15 – Janeiro-Março – 2007 – nº 58. – Instituto Brasileiro de
Direito
Constitucional, Ed. RT – pp. 39 a 50.
Trata-se de tema delicado, a morte da
pessoa humana, que possui vários aspectos, entre os quais podemos mencionar:
jurídico, clínico, moral, emocional, social, cultural, religioso, filosófico.
Em nossa cultura, em que sempre estamos voltados para o que é bom e agradável,
para a vida, esse tema é quase um tabu. Não se deve e, em muitos casos, não se
pode falar na morte.
Aprendemos que não é conveniente nem
educado tocar neste assunto. Pessoas há que não pronunciam a palavra morte.
Preferimos usar sinônimos, termo técnicos e eufemismos. Ocorre, porém, que os
seres humanos são mortais, ou seja, a vida humana tem começo, meio e fim.
Neste estudo, abordamos o tema terminalidade da vida, que se refere à etapa final da vida humana, nos casos em que a
pessoa é acometida de doença grave, incurável de acordo com os conhecimentos
atuais da Medicina e nesses casos, não raras vezes, cogita-se o assunto eutanásia, bem
como a doação de órgãos para transplantes. O vocábulo eutanásia
é formado pela associação do prefixo grego eu, cujo significado
é bom, com a palavra Thanatos, que era o deus que representava a morte, filho da noite, irmão
de Hypnos, deus do sono na mitologia grega.
Atribui-se a criação do termo eutanásia, com o
significado de “boa morte”, ao filósofo inglês Francis Bacon, em seu livro “História
da Vida e da Morte”, publicado em 1623. O termo tem sido usado para significar “morte
sem sofrimento”, morte caridosa”, morte sem dor”, “morte piedosa”1. Existem várias classificações referentes
à eutanásia, incluindo modalidades sociais, econômicas, judiciais,
religiosas. Neste estudo abordaremos exclusivamente a classificação
referente a modalidades clínicas e o modo como o direito positivo brasileiro
disciplina o tema.
Enfocamos, outrossim, a doação
de órgãos e a legislação pertinente no direito pátrio,
com a finalidade da realização de transplantes de órgãos. Essa modalidade
terapêutica já era realizada desde a década de 50 (o primeiro transplante renal
bem sucedido efetuou-se em 1954), mas a partir do desenvolvimento dos
medicamentos imunossupresores, que permitiram o controle do mecanismo de
rejeição, mais precisamente nas décadas de 70 e 80, houve a possibilidade de
realização de maior número de transplantes2. O desenvolvimento os
transplantes de órgãos teve reflexo nos critérios utilizados para a verificação
da morte, pois a principal fonte de órgãos para transplantes é o ser humano3. O novo critério de morte adotado, a
partir de 1971, foi o de morte encefálica, que progressivamente passou a ser dotado pela maior parte dos países ocidentais4. Sem termos pretensão alguma de esgotar
tais temas, trazemos alguns elementos para discussão e reflexão a respeito de
tão importantes e delicados assuntos.
Explicação dos termos
Inicialmente, cabe uma explicação no que
respeita à terminologia utilizada neste estudo: em Medicina os termos são
unívocos, diferentemente do Direito, em que os termos muitas vezes são
biunívocos, equívocos ou análogos. Fase
terminal – “por fase ou doença terminal se
compreende uma condição patológica que leva a pensar em uma expectativa de
morte em breve tempo como consequência direta da doença”5.
Paciente terminal – “por paciente terminal se designa uma pessoa portadora de
doença terminal que, em pouco tempo, com muita probabilidade morrerá”6.
Eutanásia “consiste
em ato de produzir a morte fácil e sem sofrimento de um indivíduo portador de
moléstia incurável”7.
Ortotanásia8 consiste na “suspensão
de meios medicamentosos ou artificiais de vida de um paciente em coma
irreversível e considerado em ‘morte encefálica’, quando há grave comprometimento
da coordenação da vida vegetativa e da vida de relação”9.
Devemos relatar a recente tendência da
classe médica de suprimir a expressão ortotanásia
e substituí-la por terminalidade da vida, porque o final da vida é um processo, a apresentar fatores
variáveis, com a necessidade de cuidados paliativos que atenuem e o tornem o
menos doloroso (em todos os sentidos do termo, seja físico, moral, emocional)
possível, tanto para o paciente, quanto para os seus familiares e amigos.
O artigo 1º da Resolução nº 1805 de 09 de
novembro de 2006 do CFM (Conselho Federal de Medicina) dispõe que “é permitido
ao médico limitar ou suspender procedimentos e tratamentos que prolonguem a
vida do doente em fase terminal, de enfermidade grave e incurável, respeitada a
vontade da pessoa ou de seu representante legal”.
O artigo segundo da referida resolução
determina que “o doente continuará a receber todos os cuidados necessários para
aliviar os sintomas que levam ao sofrimento, assegurada a assistência integral,
o conforto físico, psíquico, social e espiritual, inclusive assegurando-lhe o
direito da alta hospitalar”.
Distanásia “é o tratamento insistente, desnecessário e prolongado de um paciente
terminal, que não apenas é insalvável, mas também submetido a tratamento fútil.”10
Não há uma definição de futilidade
universalmente aceita, haja vista que o seu
significado é difícil de ser caracterizado concretamente. Geralmente entende-se
que fútil é algo inapropriado, não indicado, inútil, ineficaz11. Robert Truog12 o qualifica da seguinte forma: “Um problema
de futilidade, nada é capaz de defini-lo, mas todos o reconhecem quando o vêem”.
De acordo com Definição da Organização
Mundial da Saúde de 2002, “cuidado
paliativo é a abordagem que melhora a qualidade de
vida do paciente e seus familiares que enfrentam uma doença que ameaça a vida.
Promove o alívio da dor e de outros
sintomas e proporciona suporte espiritual e psicossocial desde o diagnóstico
até o fim da vida e o período de luto”. Os parâmetros clínicos a serem
observados para constatação de morte
encefálica são: coma aperceptivo com ausência de
atividade motora supra-espinal e apnéia (art. 4º da Resolução do Conselho
Federal de medicina nº1480 de 08 de agosto de 1997).
Ética – Ética Médica – Bioética
Ética é “o estudo sistemático das ações voluntárias que constituem a
conduta e o comportamento diários do ser humano”. Pode ser classificada como descritiva ao
observar e registrar o comportamento das pessoas e normativa a que
analisa se determinada conduta é boa e correta, ao considerar os comportamentos
pessoal e social13.
Refere-se, a ética médica, à
ética normativa aplicada à Medicina, haja vista que são aplicados os mesmos
princípios gerais nos problemas e situações médicas14. O juramento de Hipócrates foi o primeiro
pronunciamento da ética aplicado à Medicina e que sobrevive através dos séculos até os
dias de hoje e constitui um compromisso relevante na prática médica atual15.
O termo bioética
surgiu em 197016. Refere-se a questões pluridisciplinares. Segundo
a Declaração Universal de Bioética e Direitos Humanos “a Declaração trata das
questões éticas relacionadas à Medicina, às ciências da vida e às tecnologias
associadas quando aplicadas aos seres humanos, levando em conta suas dimensões
sociais, legais e ambientais”17. São quatro os princípios cardinais da ética médica e foram
adotados pela bioética. São os seguintes:
O princípio de autonomia “estipula
que qualquer ato que tenha consequências
para outrem seja subordinado ao consentimento da pessoa
envolvida. Sem esse acordo, a ação não é legítima e o uso da força para
resistir a ela é moralmente defensável.18” Este princípio determina que o médico transmita ao paciente
informações cuidadosas da verdade sobre o diagnóstico e prognóstico, sobre as
opções de conduta, sobre o planejamento do tratamento e das futuras
expectativas, de modo que o paciente tenha condições de entender a sua real
situação19.
O princípio da beneficência “considera
que a ação deve tender para a realização do bem tendo em consideração a concepção
do bem de outrem.20” Fundamenta-se,
este princípio, em longa tradição da ética
médica a reconhecer como objetivo básico da
Medicina o bem-estar do paciente, de modo a incluir neste tópico que “os
interesses do paciente estão em primeiro lugar”21.
O princípio da não maleficência “impõe
a obrigação de garantir que os benefícios de uma ação superam os malefícios,
segundo o preceito hipocrático primum
non nocere.22” Esta frase em latim, de origem desconhecida, não corresponde a
uma tradução literal do juramento de Hipócrates, que solicita dos médicos o “cumprimento
do que é benéfico aos seus pacientes e evitar tudo o que for prejudicial e danoso”23.
O princípio da Justiça “exprime
a exigência de uma regulação ética
das relações entre os homens que vivem em
sociedade. As suas interpretações tradicionais e racionais são diversas e estão
sempre a serem debatidas. O princípio de Justiça
é crucial para a bioética, desde
que ela tome em consideração as dimensões sociais, políticas e econômicas das
questões que
suscita.24”.
O princípio formal da justiça e igualdade atribuído
a Aristóteles sustenta o princípio da Justiça
acatado inicialmente pela ética médica e
posteriormente pela bioética, indicando que todos os pacientes devem ter acesso a um mesmo nível
de adequado de tratamento de saúde, bem como à distribuição dos recursos
disponíveis de tratamento25.
Devemos observar que não existe hierarquia entre os quatro
princípios, o que pode fornecer soluções diferentes conforme o princípio que se
privilegia. Não há, portanto, possibilidade de prever, antecipadamente, que
atitude será adotada com um determinado doente26. O entendimento ético da classe médica é no sentido da defesa
da saúde e da dignidade do ser humano e veda todo e qualquer ato que atente
contra a vida humana27, assim
o Código de Ética Médica determina o seguinte:
Art. 6º - “O médico deve guardar absoluto respeito pela vida
humana, atuando sempre em benefício do paciente. Jamais utilizará seus
conhecimentos para gerar sofrimento físico ou moral, para o extermínio do ser
humano ou para permitir e acobertar tentativa contra sua dignidade e
integridade”.
Art. 66 – “Veda ao médico, em qualquer caso, o uso de meios
destinados a abreviar a vida do paciente”.
O Capítulo III do código de Ética Médica, que trata da
responsabilidade profissional, determina que é vedado ao médico:
Art. 42 – “Praticar atos profissionais danosos ao paciente, que
possam ser caracterizados como imperícia, imprudência ou negligência”.
Princípio da dignidade da pessoa humana – Valor basilar
de nosso
ordenamento jurídico
Nos diversos países o tema é entendido de
acordo com os valores de seu povo, informados pela cultura, formada pela ética,
moral, religião, costumes, que informam todas as atividades de uma sociedade,
inclusive o Direito, que disciplina essas referidas atividades e que, por sua
vez, é informado por esses mesmos valores. Observa-se que, apesar de todo o
conjunto de fatores que formam a cultura de uma sociedade informarem o Direito,
é ele que tem a força coercitiva necessária para ditar as leis, o que
efetivamente vai obrigar ou impedir determinados comportamentos.
No que respeita a este tópico, a nossa
sociedade elegeu o princípio da dignidade da pessoa
humana como um dos principais e, segundo penso, o principal
valor, como valor basilar e do qual todos os demais valores decorrem. Consiste
em um princípio cristão28, que
informa todo o nosso ordenamento jurídico, haja vista que está positivado já no
artigo 1º de nossa Constituição como um dos fundamentos da República, pois a
República Federativa do Brasil constitui-se em um Estado Democrático de Direito
e tem como fundamentos a soberania, a cidadania, a dignidade da pessoa humana (grifamos), os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa,
o pluralismo político.
Trata-se de norma constitucional de
eficácia plena na lição de Meirelles Teixeira29, ou seja, produz, desde o momento de sua promulgação, todos os efeitos
essenciais, todos os objetivos especialmente visados pelo legislador constituinte
e incide direta e imediatamente, de modo pleno, sobre a matéria que lhe
constitui objeto (comportamentos, situações, interesses, organizações etc.). Isto
significa que toda a legislação pátria está submetida a esses fundamentos, porquanto
a todo o nosso ordenamento jurídico eles se aplicam, incluindo todas as outras
normas constitucionais e infraconstitucionais, de modo que nada que fira ou
avilte a dignidade da pessoa humana é acolhido em nosso ordenamento jurídico.
O artigo 5º do texto constitucional
determina que todos são iguais perante a lei e garante a inviolabilidade do
direito à vida, a liberdade, a igualdade, a segurança, aos brasileiros e aos
estrangeiros residentes no País.
Observa-se que tanto a República, quanto a
Democracia são originadas no princípio da Igualdade, que por sua vez, origina o princípio da Liberdade, visto
que não há hierarquia entre iguais, não é lícito que uma pessoa humana seja
proprietária de outra pessoa humana. Ora, não é possível falar em garantir a
inviolabilidade do direito à vida, em Liberdade
e em Igualdade
sem se pensar em dignidade da pessoa humana. Todos este valores decorrem de se admitir a dignidade da pessoa humana como valor principal e basilar.
A sustentar este entendimento, mencionamos
a seguinte exposição de Humberto Ávila30: “Como se vê, os princípios são normas imediatamente finalísticas.
Eles estabelecem um fim a ser atingido. Como bem define Ota Weinberger, um fim
é ideia que exprime uma orientação prática. Elemento constitutivo do fim é a
fixação de um conteúdo como pretendido”.
Consiste a dignidade
da pessoa humana em princípio absoluto e neste sentido, entende-se
que a pessoa humana é um minimum
invulnerável que deve ser assegurado por
todo estatuto jurídico, pois ainda que se opte, em determinada situação, pelo
valor coletivo, essa opção não poderá nunca
sacrificar ou ferir ovalor da pessoa humana31.
______________________
1 PETROIANU, Andy. Ética, Moral e Deontologia Médicas. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 2000, p.
251.
2 HOTTOIS, Gilbert;
MISSA, Jean-Noël. Nova Enciclopédia da Bioética. Portugal: Instituto Piaget, 2003,
p.661.
3 HOTTOIS, GILbert;
MISSA, Jean-Noël. Op. cit., p. 661.
4 HOTTOIS, Gilbert;
MISSA, Jean-Noël. Op. cit., p490.
5 URBAN, Cícero de Andrade. Bioética Clínica.
Rio de Janeiro: REVINTER, 2003, p. 496.
6 URBAN, Cícero de Andrade. Op. cit., p. 496.
7 BLAKISTON. Dicionário Médico.
2ª Ed. São Paulo: Organização Andrei Editora Ltda., p. 410.
8 Está em andamento a elaboração de texto
legal com o fito de disciplinar expressamente a ortotanásia. Até a
conclusão deste artigo, a situação referente à matéria está do
seguinte modo: Cláudia Collucci (in
Folha de
São Paulo, dia 17.11.06) informa que “há um anteprojeto do
Código Penal que está na CCJ (Comissão de
Constituição e Justiça) que regulamenta o assunto e que, a CNBB
(Conferència Nacional dos Bispos do
Brasil) colocou-se favoravelmente à ortotanásia,
citando uma encíclica do papa João Paulo 2º, em que afirma
que a prática, feita “com sério discernimento”, representa “a
aceitação da condição humana diante da morte”.
9 URBAN, Cícero de Andrade. Op. cit., p.
538.
10 URBAN, Cícero de Andrade. Op. cit., p.
538.
11 URBAN, Cícero de Andrade. Op. cit., p. 515.
12 TRUOG, Robert, apud Cícero
de Andrade Urban, op. cit., p. 515.
13 BASTOS, Antonio Francisco; PALHARES,
Fortunato Badan; MONTEIRO, Antonio Carlos. Medicina
Legal Para Não Legistas. São Paulo: Copola Editora, 1998, p. 243.
14 Idem, p. 243.
15 Idem, p. 243.
16 HOTTOIS, Gilbert; MISSA, Jean-Noël. Nova Enciclpédia da Bioética. Portugal: Instituto Piaget, 2003, pp.
112 a 114.
17 Declaração Universal sobre
Bioética e Direitos Humanos, Tradução e
revisão final sob a responsabilidade
da Cátedra UNESCO de Bioética da Universidade de Brasília (UnB)
e da Sociedade Brasileira de Bioética
(SBB).
18 HOTTOIS, Gilbert;
MISSA, Jean-Noël. Op. cit., pp. 70.
19 BASTOS, Antonio Francisco; PALHARES,
Fortunato Badan; MONTEIRO, Antonio Carlos. Op. cit., p.
245.
20 HOTTOIS, Gilbert;
MISSA, Jean-Noël. Op. cit., p. 88.
21 BASTOS, Antonio Francisco; PALARES,
Fortunato Badan; MONTEIRO, Antonio Carlos. Op. cit., p. 245.
22 HOTTOIS, Gilbert;
MISSA, Jean-Noël. Op. cit. p. 495.
23 BASTOS, Antonio Francisco; PALHRES,
Fortunato Badan; MONTEIRO, Antonio Carlos. Op.
cit., p. 246.
24 HOTTOIS, Gilbert;
MISSA, Jean-Noël. Op. cit. p. 449.
25 BASTOS, Antonio Francisco; PALHARES,
Fortunato Badan; MONTEIRO, Antonio Carlos. Op. cit., p.
246.
26 HOTTOIS, Gilbert;
MISSA, Jean-Noël. Op. cit. p. 72.
27 PETROIANU, Andy. Ética, Moral e Deontologia Médicas. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 2000, p.
252.
28 FERRAZ JR., Tércio Sampaio. Introdução ao Estudo do Direito. 4ª Ed. São Paulo: Ed. Atlas, 2003, p. 193.
29 MEIRELLES TEIXEIRA, Curso de Direito Constitucional Organizado e
atualizado por Maria Garcia,
Rio de Janeiro, 1991, 1ª Ed., p. 317.
30 ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios. 5ª Ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2006, p. 79.
31 SANTOS, Fernando Ferreira. Princípio Constitucional da Dignidade da Pessoa Humana. São Paulo: Celso
Bastos Editor, 1999, p. 94.